Estudo analisa abastecimento de água com sistemas de energia solar em comunidades ribeirinhas da Amazônia.
Há 20 anos, projeto do Instituto Mamirauá leva água encanada a comunidades ribeirinhas com difícil acesso à energia elétrica na região do Médio Solimões. Artigo publicado recentemente analisa o desenvolvimento e evolução desse processo.
A imagem ainda vive no imaginário popular: uma mulher, cansada pelo excesso de peso, carrega um balde, vaso ou lata de água na cabeça, da fonte até a sua casa, para ser utilizada pela família. Essa cena, clássica em obras de arte, no cinema e até em canções, deixou de ser realidade há um bom tempo para 21 comunidades ribeirinhas nas reservas Amanã e Mamirauá, no Amazonas. A mudança é fruto do trabalho do Programa Qualidade de Vida (PQV), do Instituto Mamirauá, que desenvolveu um sistema de abastecimento de água adaptável à complexa região das várzeas amazônicas, de extrema variação no nível da água dos rios entre os períodos de seca e cheia.
O desenvolvimento desse projeto, que desde 1995 - mesmo antes da criação do instituto - vem ajudando a melhorar o acesso dessas populações tradicionais à água encanada, é descrito no artigo “Surrounded by sun and water: development of a water supply system for riverine peoples in Amazonia”, publicado na revista Tecnologia e
Sociedade. Os ribeirinhos da Amazônia até hoje sofrem com doenças relacionadas à ingestão de água imprópria para o consumo humano e com a falta de políticas públicas voltadas para a solução do problema. “Hoje, temos um sistema de abastecimento de água que consideramos adequado para a várzea. Foi um processo de tentativas, erros, de buscar novas informações, parceiros, e só dessa forma chegamos a essa tecnologia”, conta a engenheira ambiental Maria Cecília Gomes, coordenadora do Programa Qualidade de Vida e uma das autoras do artigo. “Esse projeto é um dos primeiros do instituto no tema de tecnologias sociais. É uma das nossas tecnologias melhor desenvolvidas e que já tem condições de ser replicada. ”
A energia solar
A origem do projeto está diretamente relacionada ao início das atividades do Instituto Mamirauá, uma unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em prol do desenvolvimento sustentável de comunidades na Amazônia Central. A ausência de água encanada e tratada nas moradias da região
era mais uma consequência de uma das maiores dificuldades encontradas pelos pesquisadores que, já nos anos 80, trabalhavam com pesquisa na região: a ausência de energia elétrica.
Devido a seu isolamento geográfico, por estarem localizadas em uma região repleta de rios e sem grandes estradas, as pequenas vilas das reservas Amanã e Mamirauá encontram grande dificuldade no acesso ao cabeamento elétrico. A maioria das comunidades recorre aos geradores a diesel para ter energia em casa. Só que o
combustível representa uma baixa cada vez mais significativa na já limitada renda dos comunitários. No que diz respeito à água encanada, a energia elétrica seria fundamental para o bombeamento até o local onde ela seria armazenada.
Inicialmente, uma bomba manual foi pensada para levar a água de seu local de origem, a princípio em poços, ao reservatório da comunidade. Rapidamente notou-se, porém, que o esforço necessário para realizar tal trabalho inibia a utilização do equipamento pela população. “Isso contribuiu para que a instituição buscasse uma fonte de energia
elétrica que realizasse esse trabalho e diminuísse o esforço físico das famílias”, revela Cecília.
Para chegar a uma tecnologia que desse conta do trabalho em um local com características tão adversas, o PQV foi atrás de parceiros que entendessem do assunto e pudessem qualificar a equipe do instituto a lidar com a situação. A Universidade de São Paulo (USP) foi fundamental nesse processo. Estabeleceu-se, então, que a forma de energia propícia a ser utilizada na região seria a fotovoltaica – ou solar –, por se adequar bem ao clima amazônico, onde o brilho do sol bate forte na superfície na maior parte dos dias do ano.
A água
No início do projeto, havia três possibilidades de trabalho com a água. Era possível extraí-la de poços artesianos, captar a água da chuva ou bombeá-la diretamente do rio. A primeira tentativa, com os poços, se revelou inapropriada, devido ao alto custo e a dificuldade de se trabalhar com as brocas necessárias para atingir a profundidade do lençol freático propícia para a extração de água limpa. Já a água da chuva, captada através dos telhados das moradias, seria uma opção mais viável. A chuva trazia a
vantagem de não apresentar a turbidez – o aspecto barrento – da água do rio, ainda que necessitasse de desinfecção, em função de seu contato com os telhados. “O uso é tradicional na região, mas a equipe decidiu promover e incentivar, por meio de projetos de pesquisa e da instalação cisternas, o seu aproveitamento em algumas casas”, explica a pesquisadora.
O uso da água da chuva, que até hoje acontece nas comunidades que receberam o projeto, não poderia, porém, ser a única forma de obtenção do recurso pelas comunidades. Apesar de abundante no início do ano, o menor volume de precipitação apresentado na temporada mais seca não dava conta de suprir todas as necessidades das famílias. “As pessoas precisariam de reservatórios muito grandes para atender à demanda. Então consideramos a água da chuva um complemento para alguns usos: beber, cozinhar. ”, aponta Cecília.
Mais barata e de menor complexidade para ser acessada, a água do rio passou então a ser considerada a alternativa mais adequada ao ambiente da várzea amazônica. Foi utilizado um sistema de bombeamento adequado à energia solar. A água passa também por uma filtragem, antes de chegar a um reservatório suspenso, de onde é direcionada às casas pela força da gravidade.
O sistema foi bem-sucedido nos 21 locais onde foi implementado, atingindo cerca de 1.700 moradores. Ainda estamos analisando resultados de um estudo sobre os impactos desta tecnologia, mas nota-se que, nas comunidades que receberam a instalação, há menor ocorrência de diarreia, frequentemente associadas ao consumo
de água em quantidade insuficiente e com qualidade imprópria, e melhores condições de vida, incluindo conforto e higiene.
Próximos passos
Apesar do sucesso do programa, ainda há muito o que se fazer para garantir o acesso dessas comunidades à água limpa. O sistema representa uma melhoria considerável na qualidade de vida da população ribeirinha local, mas ainda não é capaz de tratar a água da maneira ideal. “Agora buscamos melhorar a qualidade, porque nesse sistema acontece uma filtração, mas é muito grosseira. A água barrenta fica bem melhor, mas não atinge o padrão de potabilidade que o Ministério da Saúde recomenda”, afirma a pesquisadora.
Por essa razão foi, e ainda é, fundamental ao projeto o trabalho de educação em saúde e o incentivo ao tratamento da água dentro das casas, seja através de filtros, com a fervura ou com a utilização de produtos químicos. “Nessas 21 comunidades também foi feito um trabalho de educação voltado para o uso adequado da água no domicílio e para os cuidados com o armazenamento: que seja um local limpo, que seja livre de insetos, fácil de higienizar”, explica.
Planeja-se também, a implementação de uma etapa de tratamento da água mais apropriada para todo o sistema, que se adeque bem às particularidades locais. Algumas adaptações que já são trabalhadas no programa permitem que a comunidade interaja de forma mais eficiente com o equipamento e se aproprie da tecnologia. “Utilizamos
madeira nas estruturas, pelo fato de os moradores locais saberem lidar com o material e por ele estar disponível na região. As pessoas têm condição de fazer manutenção e reposição. Isso incentiva o que a gente chama de apropriação, de tornar a tecnologia mais adequada para as comunidades”, relata Cecília. A ação da instituição também busca aumentar a sustentabilidade econômica do abastecimento de água, incluindo-o em um sistema público e regional de saneamento. A ideia é eventualmente aplicar essa lógica também à bomba de água escolhida para o projeto – um equipamento próprio para a utilização com energia solar, mas que ainda tem o custo muito elevado para a
realidade local. “O uso da energia solar também é adequado porque ele não depende de as pessoas terem diesel ou outras formas de energia elétrica. Então, mesmo não havendo energia elétrica nas comunidades, com esse arranjo elas podem continuar tendo água”, complementa. “Se as famílias não se envolvem, a tecnologia não funciona. Hoje podemos dizer que as comunidades identificaram os benefícios que existem a partir do uso desse sistema e recebemos muita demanda para construir novos.
Medimos o sucesso da tecnologia também pela demanda de replicação de diversas comunidades. Sejam comunidades vizinhas ou de alguém que passou ou ouviu falar e deseja levar para a própria comunidade também”, conta a pesquisadora. Além de Cecília Gomes, a pesquisa teve como autores Ana Claudeíse Silva do Nascimento, Dávila Suelen Souza Corrêa, Otacílio Soares Brito, Edila Arnaud Ferreira Moura.
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